Excerto do livro "SENSA"
- pedropocas-nazunia
- 22 de set. de 2020
- 8 min de leitura

…À medida que me aproximava deu-me a impressão de ser alguém na faixa dos trinta anos. Estava agora a menos de três metros dele quando parei sem saber o que falar. Ele não tinha dado pela minha presença e eu fiquei por alguns segundos estática como uma múmia, sem conseguir encontrar um modo natural de abordá-lo. Tinha medo de fazer figura de parva e pus-me a formular frases mentalmente sem me conseguir decidir por nenhuma delas... Mas por fim emiti um suspiro, fechei os olhos e espontaneamente soltei um “olá” num tom surdo – ele nem se mexeu. Elevei o tom da voz e repeti mais dois “olás”... Nada. Ele voltou a permanecer imóvel como se estivesse noutro mundo. Resolvi então pôr-me à frente dele e tentar perceber o que aquele peculiar tipo estava a fazer... Ele realmente meditava numa posição de lótus perfeita e nem se tinha apercebido da minha presença. Por fim sentei-me diante dele e perscrutei-lhe o rosto minuciosamente à espera de um qualquer movimento involuntário. Foi escusado. O rapaz parecia petrificado como se de uma estátua budista se tratasse. Senão fossem as leves contrações do seu peito dir-se-ia que estava embalsamado. Mas eis que subitamente ele abre um dos olhos para voltar rapidamente a fechá-lo e eu aproveitando esse esperançoso sinal de vida, impaciente, atirei em voz alta para lhe despertar a atenção:
- Desculpe incomodá-lo!
- Não tem importância. Pode-se ir embora agora – Respondeu calmamente sem abrir os olhos.
- O quê?
- Pediu-me desculpa e eu aceito as desculpas. Você realmente incomodou-me, mas está tudo bem... Deixe-me agora regressar ao meu centro.
- Ao meu centro?? Podia por favor abrir os olhos que me está a fazer confusão!
- Está a ser muito desagradável, primeiro perturba a minha paz e agora está a querer interferir no meu livre-arbítrio?
- Eu... Eu não acredito que isto esteja a acontecer.
- O que é que está a acontecer? – Replicou abrindo os olhos.
- O que é que está a acontecer??... Você não se apercebe da sua extrema indelicadeza?
- Vamos com calma linda...
- Não me trate assim!
- Prefere que lhe chame feia?
- Ai ai, isto está a ficar bonito está...
- Vamos lá esclarecer as coisas. Você aparece aqui sem mais nem menos e interrompe-me. Eu realmente ouvi os “olás” e até pensei que fosse o vendedor de gelados fora de época, por isso não liguei na esperança que fosse embora. Depois... Uma coisa que simplesmente não consigo compreender nas pessoas, primeiro pede desculpa e a seguir incomoda-me. Consegue explicar esse contra-senso? Para não dizer mesmo absurdo...
- Não sei... É uma expressão comum quando se aborda alguém. Não sei aonde está o absurdo?
- Não sabe porque – assim como todo o mundo – permitiu que um programa lhe invadisse o seu espaço silencioso. E agora não tem percepção que age e fala no mesmo padrão artificial que lhe foi induzido pela sociedade – Consegue ver isso?
- Nada mesmo.
- Eu explico de outra forma. Repare! Uma coisa é você pisar o meu pé involuntariamente, está a compreender?...Você não tem intenção de me aleijar e acidentalmente pisa-me. Aí é normal pedir desculpa porque não sabias o que ias fazer. Mas agora o caso foi diferente. O que acabaste de dizer há pouco é uma frase feita inventada por algum palerma e que se alastrou à mente colectiva da humanidade. Mas se porventura conseguirmos encontrar o nosso espaço silencioso onde há uma consciência... digamos... Mais genuína, passamos a dar conta desses disparates muito facilmente. Esses e muitos outros.
Quando digo que se trata de um disparate é porque tu já sabias “à priori” que irias me incomodar... Então para quê pedir desculpa antecipadamente por uma acção que desejaste empreender. Das duas, uma. Se tinhas noção que era um incómodo para mim, simplesmente não tinhas estragado a minha bela meditação, não havia incómodos nem desculpas e prosseguias o teu caminho. Ou então interrompias-me sem rodeios e dizias o que pretendias directamente porque neste caso o incómodo não tem qualquer importância comparada com a atitude verdadeira e pura do ser que deseja partilhar algo – Fui claro, linda?
- Mas porque raio continua a provocar-me? Já não lhe pedi para não me chamar isso?
- Isso é um assunto para depois, não te disperses agora com banalidades. Entendeste o que te falei?
- Entendi... Realmente você tem razão. Faz sentido aquilo que disse, mas no nosso dia-a-dia isso é utilizado como uma expressão comum e ninguém está para se preocupar com os significados filosóficos. É a primeira pessoa que oiço falar num pormenor desses.
- Para mim é nos pormenores que se revela a essência do Ego humano. Eu só estou a consciencializar-te disso. Essa expressão banal é bastante reveladora da nossa falsidade e insegurança para lidarmos naturalmente uns com os outros; há nela um claro conflito: a pessoa quer se aproximar da outra mas tem receio e hesita, há um subtil sentimento de culpa como se estivéssemos a invadir a privacidade do outro. Vivemos demasiado distantes uns dos outros e então criámos esse tipo de “clichés” para diminuir essa sensação de mal-estar em nós. É uma frase aceitável do ponto de vista social, como um código que nos autoriza a falar com alguém... Mas certamente sem sentido algum aos olhos do Espírito.
- És mesmo estranho... Mas tudo bem. Então, segundo a tua visão espiritual, qual o modo mais apropriado para me dirigir a uma pessoa desconhecida? Como é que eu me deveria ter dirigido a ti?
- Sei lá! Havia tantas maneiras. Uma delas já te falei.
- O quê, chegar ao pé de ti e interromper-te abruptamente?
- Sim, porque não?
- Não era capaz de fazer isso.
- Porquê?
-... Porque seria demasiado invasiva. E além disso podia assustar-te.
- Nesse caso então porque não te fazeres anunciar de uma forma mais silenciosa?
- Como? O silêncio já era o ambiente dominante aqui.
- Podias por exemplo ter-me dado um beijo suave...
- Olha que essa, já agora! Não vim até aqui para isso.
- Achas que é algo assim tão mau dar um beijo a um desconhecido?
- Claro que acho! Qual o propósito disso?
- Estabelecer uma conexão imediata.
- Tu só podes ser louco. Realmente... Começo a questionar a minha vinda até aqui. Pensei que fosses alguém especial mas afinal parece que és como todos os homens.
- Eu não te estou a prender aqui linda, quando quiseres podes ir-te embora.
- Porra pá! Mas que merda. És capaz de parar de me chamar linda!
- Porquê?
- Porque não gosto! Não me conheces de nenhum lado. Não tens qualquer envolvimento comigo... E a forma como o dizes parece que estás a gozar.
- Tenta acalmar-te um pouco, eu não estou a gozar contigo. Realmente acho que és uma linda rapariga e como não sei o teu nome não encontrei outro adjectivo melhor.
- Pois... Nem cheguei a dizer o meu nome. Não sei, não estou a achar esta conversa nada normal, parece conversa de malucos. Tu és uma pessoa esquisita. Depois esta praia deserta. Não pareces nada interessado na minha presença, és indiferente, indelicado, agressivo, seco. Essa roupa esquisita de surfista, esse teu sorriso malicioso. Tu és mesmo deste mundo?... Diz-me qualquer coisa normal por amor de Deus?
- Eu chamo-me Pedro e sou do planeta Terra.
- Até que enfim. Podemos agora conversar normalmente?
- Não.
- Não? Como é que é então, por um lado elogias-me dizendo que sou bonita e agora não queres falar comigo?
- E porque é que uma coisa tem de estar associada à outra? Um homem não pode elogiar uma mulher e ao mesmo tempo não estar interessado em falar com ela?...
- Pode. Mas isso não é muito normal, não achas?
- Escuta uma coisa. Em primeiro lugar nós já estamos a falar há um quarto de hora... E depois tu perguntaste-me se poderíamos ter uma conversa “normal”. Isso é algo impossível de suceder comigo. Tudo irá ser “anormal” enquanto estiveres aqui na minha presença... Então?...
- Eu só acho é um pouco estranho não teres a mínima curiosidade acerca da razão de eu estar aqui. Não queres saber como eu vim aqui parar?
- Não é relevante.
-... E saber o meu nome é relevante?
- Nada mesmo.
- Incrível! Os nomes das pessoas não te interessam?
- Pouco...
- Então porque é que sentiste necessidade de dizer o teu nome?
- Não fui eu que senti. Lembras-te?... Tu estavas desesperada por alguma normalidade e eu dei-ta.
- Olha... Sendo ou não relevante para ti os nomes dos terráqueos, eu vou identificar-me. O meu nome é Sensa.
- Sensa? Que nome tão invulgar... Mas gostei. Já não te vou chamar mais “linda”.
- Agradeço.
- Já reparaste numa coisa engraçada nos nossos nomes? Eu que não pareço humano aos teus olhos tenho nome de terráqueo, e tu, supostamente alguém mais normal, tens nome de alien...
- É, curiosa observação... E agora até estás a sorrir, não és assim tão alien afinal. Se queres que te diga és muito difícil de definir.
- E qual é a necessidade de definires-me? Se puseres as definições de lado, as dificuldades desaparecem. As pessoas vivem absortas nas suas mentes a tentar definir tudo à sua volta, cansam-se à procura de respostas, embalam ideias e colocam-lhes rótulos. Entende que todo o ser humano é como um recipiente de um vidro cristalino quando nasce, depois cresce e a sociedade vai-lhe colocando e trocando de etiquetas ao longo da vida... Às tantas deixamos de ver o interior do vidro, tudo ficou baço – perdeu-se o brilho. Tenta ver-me como um vidro...
- Vou tentar... Palavras sábias essas.
- Todos os seres humanos têm uma sabedoria escondida que pode surgir na descoberta do seu espaço interior.
- E que espaço interior ou silencioso é esse que estás sempre a referir? Tem a ver com a meditação?
- Podem surgir lapsos de consciência sim. Mas a meditação é apenas uma das chaves. O espaço interior é um estado de ser que modifica o teu modo de encarar o mundo. Transforma-te num novo ser fundido com a tua essência divina, o que por sua vez vai repercutir-se em todos os aspectos das tuas relações com o exterior, nos mais variados momentos da tua vida. Transcende o acto meditativo comum tornando a totalidade da vida numa meditação contínua. Saboreias uma existência mais pacífica contigo porque te elevaste acima dos vícios da mente e minimizaste a importância das tuas emoções; e de facto envolves-te numa atitude mais central onde entendes que o mundo exterior é em última análise uma expressão de ti mesmo. Mas no entanto só é possível chegares lá, quando compreenderes o mecanismo subtil do Ego que interage entre ti e a sociedade, e que deturpa o significado espiritual que envolve a fusão do espaço interior com o espaço exterior.
O problema é que o reinado do Ego neste mundo confuso, por norma, não permite ao ser humano discernir o poder da sua alma e isso coloca-o numa posição frágil e vulnerável perante as complicadas circunstâncias do aparente caos do espaço exterior... Na realidade o Ego envolve-nos numa bela ilusão só que nós não distinguimos a beleza porque a supremacia dele (Ego) ocultou o poder do Espírito numa «gruta profunda» de modo que ele não marque presença.
Presentemente a Humanidade está convencida que a realidade predominante se resume ao espaço exterior testemunhado pelas suas sensações físicas, que transformada ao longo dos tempos num paradigma, conduziu o ser humano a uma extrema infelicidade. O Homem esqueceu-se do Espírito que jaz há tempo demasiado nos recônditos obscuros da sua ignorância. Mas se quiseres Sensa...Hoje posso-te dar um vislumbre daquilo que foi perdido.
continua....
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